19/11/2010

Janela Crítica - INT 06 – Caro Diário


Um registro de verdades íntimas. Assim se pode pensar o programa internacional Caro Diário, que une seus curtas por uma temática centrada nas descobertas e sentimentos individuais diante do mundo e, do mesmo modo, com uma estética semelhante: registros naturalistas, como se a câmera participasse daquele ambiente.

O primeiro curta da noite – Blokes
(Marialy Rivas, 2010) – mostra a descoberta da sexualidade de dois rapazes durante o cerco provocado pela ditadura militar, em que a coação já havia se tornado lugar comum para todos. Com excelentes interpretações e um roteiro enxuto, o diretor compõe um cenário não-melodramático de uma sexualidade que nunca se mostra deveras sofrida, mas como um desvio às convenções rígidas.

Androids
(Maria Pérez, 2010), por sua vez, trata da exclusão social onde os algozes, na verdade, ganham o rosto da família: em um subúrbio quase idílico, um rapaz une-se à sua vizinha deficiente para formar um clube do OVNI, algo visto com bastante estranheza por todos que os cercam. De forma bastante convencional e abusando dos estereótipos, o diretor conduz suas protagonistas com destreza até sua tentativa de redenção, onde o desejo de ir embora não toma simplesmente ares de fuga, mas de um retorno ao seu “lar original”. Se o riso pela situação absurda de ambos surge, é pela identificação extrema com cada um de nós que se sente “desencaixado” dos padrões.


Seguindo a mesma esteira familiar, Dans nos veines (Guillaume Senez, 2010) trata de um pós-adolescente que, por conta das brigas familiares, teme perpetuar o estereótipo de paternidade que sempre acompanhou e padeceu em casa. Esteticamente, seu diretor se mostra seguro de suas intenções através de atores extremamente à vontade com seus personagens, permanecendo sempre desafiados pelas ações do outro. Se, em alguns momentos, os diálogos explicam excessivamente os sentimentos das personagens, acontece como na vida, quando nem sempre estamos à vontade para agir e explicar-se em demasia termina se tornando uma alternativa que traga mais alívio.


Encerrando esse ciclo sobre individualidades e familiaridades “disformes”, En suspension (Fanny dal Magro, 2009) mostra uma mãe solteira que cuida de uma filha que a reprime com seus desejos e carências insaciáveis, através de um roteiro sutil e interpretações cativantes que contrabalançam densidade e leveza com elegância. O desejo de se tornar responsável se desequilibra quando a ânsia de fugir das conseqüências que vêm a partir dele termina por sufocar a experiência da maternidade. Contudo, o cineasta não se mostra pessimista: como atesta a cena final, por mais difícil que seja continuar, o amor e o perdão surgem para trazer de volta as razões que permeiam esse desejo do compromisso.


Indivíduos que participam da sociedade. Comunidade que interfere nas decisões do indivíduo. Ao sair da sala de cinema, o espectador se revê como protagonista de seu próprio diário, como uma carta de desafio para os que o rejeitam ou uma declaração de amor àqueles que abrem seus braços para recebê-lo.

Janela Crítica - BRA 07 – De frente para a cidade


Ao olhar para os lugares onde habitamos de dentro para fora ou de fora para dentro, percebemos os meandros que saltam aos olhos e seguem além do simples concreto, mas tornam-se sensações que carregamos dentro de nós. Dessas sensações, o programa De frente para a cidade explora seus trabalhos.

Da sequidão nordestina, surge o primeiro curta – O Som do Tempo (Petrus Cariry, 2010) –, em que o espectador, de início amedrontado com os gigantes letreiros iniciais, mergulha sem medo na realidade miúda que o diretor exibe através de uma inspirada paleta de cores e monocromias e uma sonoridade quase sólida de tão presente, composta pelos sons diegéticos. Sem se prender ao ambiente sertanejo onde se fundamenta, o curta se universaliza ao deslocar sua câmera pelo mínimo, pelo zoom extremo ao cotidiano, onde sons e ritmos triviais compõem uma sinfonia sobre a própria passagem do tempo: ele não nos pertence, mas somos nós que caminhamos por sua estrada.

Transitando através das complicações do ajuntamento social, político, histórico das pessoas que nele habitam, Dias de Greve (Adirley Queirós, 2009) mostra-se um curta bem produzido, mas pouco inspirado – no quesito roteiro, direção e interpretação – para tratar dos embates entre as lutas trabalhistas a necessidade de sobrevivência. O espectador acompanha sem muita expectativa as discussões dos proletários grevistas, dos fura-greves e a relação posterior ao retorno para o trabalho, em que opressor e oprimido mantém-se da mesma forma – sintetizado pela cena final, onde, embora no mesmo lugar, os homens ainda assim deixam-se levar pelas relações hierárquicas.

Caminhando na contramão dos curtas anteriores através da criação de um mito dentro do universo urbano da Bahia, O sarcófago (Daniel Lisboa, 2010) mostra a composição primitiva e apocalíptica de um artista plástico para sua maior obra de arte: ele mesmo. Lisboa, através de uma edição precisa, uma trilha sonora contundente e impulsionante e enquadramentos estudados, consegue compor a dinâmica de sua personagem e permitir que o filme seja completamente dela. Religião e futurismo se mesclam em um Frankenstein estranho aos olhos da cidade, mas que comunica essa necessidade de transcender as barreiras temporais e espaciais da representação de si mesmo para seus companheiros de comunidade.

Finalizando esse ciclo – que parte de um olhar dos pertencentes à comunidade e chegando a um olhar marginal -, o curta Bailão (Marcelo Caetano, 2009) trata de um salão em São Paulo que reúne homossexuais de todas as faixas etárias pelo único propósito de comungar um momento: a dança. A partir de depoimentos de participantes de um “submundo” homossexual, o diretor costura uma relação de opressão em relação à cidade, à comunidade que segrega aqueles que optam por assumir uma sexualidade diferente dos padrões. Mesmo sem inovar esteticamente, o curta propõe um painel honesto de um arrependimento pelo que não se viveu, onde público e o particular se misturam com uma historicidade doída pelo amor não-concretizado.

Através de olhares tão pessoais sobre o lugar onde se vive, seus diretores mostram que as relações que se estabelecem na comunidade podem ser de afeto ou rejeição, de aceitação e medo, por que nossos habitats influenciam e são influenciados por aqueles que deles participam, sejam cineastas ou espectadores.

17/11/2010

Janela Crítica - BRA 04 – Fazendo Contato


Estabelecer contato prescinde de disposição de um para relacionar-se com algo ou alguém externo a ele, seja concreto ou sobrenatural. O programa 04 da Mostra Competitiva Nacional mostra a fluência dos diversos tipos de comunicação que pode se estabelecer com esse exterior.

Iniciando este ciclo, Canoa Quebrada (Guile Martins, 2009) traz o diretor em uma jornada em busca de seu pai, a quem nunca conheceu: a saída de casa, a viagem, a preparação do corpo e da alma no hotel. No momento-chave do longa – o primeiro encontro –, não ocorre uma epifania melodramática, mas uma evanescência natural diante do que o espectador (não) vê: o contato se realiza através da voz, emergindo essa figura paterna somente na imaginação. De maneira habilidosa, o diretor constrói um universo masculino destituído do ranço pelo abandono, mas com desprendimento com a possível seriedade que esta questão normalmente requer.

Em contrapartida ao anterior, o curta Carreto (Marília Hughes e Cláudio Marques, 2009) propõe um contato através de imagens e não de sons: Tinho trabalha carregando frutas num carrinho de mão e conhece outra criança que, mesmo deficiente, vive a infância que ele não experimenta. Utilizando desenhos, gestos e olhares, o diretor emociona o público com um painel delicado de afeição e confiança que se firma com uma redenção extremamente sutil, e não por algum deus ex machina milagroso.

De relacionamentos concretos, parte-se para contatos fundamentados no desconhecido: As Corujas (Fred Benevides, 2009) – baseia-se na literatura de Moreira de Campos para mostrar um homem que, meticulosamente, afasta as corujas do necrotério em que trabalha. Com essa base, o melodrama manifesta-se gradativa e intensamente através da confluência quase mágica de enredo, interpretações, enquadramentos, trilha e efeitos sonoros, fotografia. Todos esses elementos constroem uma ambientação lúgubre que inebria e atenta o espectador para qualquer impressão de mudança, da maneira mais inesperada possível.

Náufragos (Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha, 2010), por sua vez, trata da morte de maneira alegórica e até divertida: Dona Odete tenta de todas as formas reencontrar o esposo que sumiu. Protagonista e diretora compõem um quadro elegante – com imagens ao mesmo tempo ternas e absurdas - onde real e sobrenatural não se excluem, mas se influenciam. Enquanto esmaece ao encontro do seu marido, somente a memória de Dona Odete proporcionará ao público sua eternidade, ao contrário daqueles que se perpetuam através da imagem.

Finalizando este ciclo, O Mundo é Belo (Luiz Pretti, 2010) privilegia a mescla do concreto com o sobrenatural em um universo transcendental: nosso mundo. O tempo parece se dilatar diante dessa presença quase divina através de imagens e sons que traduzem a sensação de abrir os braços diante do eterno e do fugaz.

Externo / Interno. Concreto / Sobrenatural. Conceitos que se fundem na construção de uma emoção / reflexão sincera sobre nossas formas de relacionamento com pessoas e obras como estas ou através delas.

16/11/2010

Janela Crítica - BRA 03 – Quanto Vale um Rosto


Mensurar um valor específico para se pagar para usar ou simplesmente observar um corpo pode ser considerado tarefa ingrata, mas algo que certamente temos feito com mais freqüência do que imaginamos, como demonstra o Programa 03 desta Mostra Competitiva Nacional.

Iniciando com o curta Ensaio de Cinema (Allan Ribeiro, 2009), um cotidiano caseiro de dois homens toma fôlego e êxtase quando a criação cinematográfica toma conta daquele ambiente, onde um se permite ser “filmado” e outro vasculha a imagem do outro em um ensaio caloroso em imagens e sensações. Uma bela fotografia que torna estes dois personagens quase palpáveis diante da tela, assim como diálogos que privilegiam a naturalidade de um amor desmedido pelo cinema – com referências a mestres como Antonioni, Bertolucci e Loach.

Em contrapartida, encontra-se em Cynthia (Marcelo Toledo e Paolo Gregori, 2010) a sucessão dos dias de uma mulher obrigada a estipular um preço para seu próprio corpo, trabalhando como manicure e garota de programa a fim de estudar dança no Japão. Belos ângulos e interpretações naturalistas bem compostas fazem deste curta um retrato doloroso e dramático de um cotidiano que aprisiona e parece cegar aqueles que nele se estagnam, mesmo possuindo o desejo de ir embora. Ao final do curta, em uma cena singular, Cynthia, com seu corpo pintado de branco e usando peruca verde, realiza uma performance para o espectador, demonstrando toda a dor de ser considerada mercadoria barata, objeto sexual. O espectador, então, se surpreende chorando por uma mulher igual a tantas outras, mas que se decompõe diante dele, como um pedido de misericórdia.

Finalizando o programa, Permanências (Ricardo Alves Junior, 2010) propõe estabelecer relações de semelhança entre as paredes desgastadas de um prédio em Minas Gerais e os rostos degradados de seus habitantes, mas, com o desenvolver do curta, um novo elemento torna-se chave para este relacionamento: a câmera. Considerada intrusa naquele meio, ela parece constranger o olhar de seus objetos de afeto, por parecer “impiedosa” no seu registro de todos os detalhes que percebe. Enquanto os personagens ocultam seus olhares da análise – talvez fria, talvez emocionada – do espectador, este também se constrange de ter pago um ingresso por uma expressão cujo valor é impossível limitar ou definir.

Com estes três excelentes trabalhos, o programa Quanto Vale um Rosto encerra uma mostra que se equilibra entre o êxtase e a reflexão, que dilui emocionalmente seu espectador tão anestesiado pelo consumismo e culto corporal do dia-a-dia.

15/11/2010

Janela Crítica - INT 05 – Estados Alterados


Quando se fala em alteração de estados, pode se pensar em estados físicos – sólido, líquido e gasoso -, o que também pode ser pensado em estados emocionais, quando pensamos estar mais firmes ou alucinados de acordo com o momento.

Uma sensação de estranhamento permeia o primeiro curta do programa - A history of mutual respect (Gabriel Arantes e Daniel Schmidt, 2010) conduz o espectador por uma história onde o desrespeito não se esconde através de atitudes polidas e falsas, mas emerge das relações de suserania e vassalagem que os personagens exercem. A ironia e o paradoxo constituem um ponto-chave do roteiro através de diálogos ao mesmo tempo filosóficos e preconceituosos, fortalecidos por meio de imagens inquietantes e belas – como a perseguição do homem branco nu à nativa desprotegida pela floresta na tentativa de miscigenar e perpetuar sua raça naquele lugar.

Propondo um olhar mais absurdo e cômico sobre as sensações, Floating Head (Ben Dickinson, 2010) flerta com os filmes fantásticos trash utilizando efeitos especiais toscos para trazer à tona diferentes relações que possuímos com o desconhecido: medo, rejeição, falta, anseio, amor, aceitação. Tudo isso demonstrado da maneira mais esdrúxula e divertida possível, ainda que de maneira rasa.

Indo na direção oposta ao trabalho anterior, ao criar uma mitologia muito simbólica e hermética para lidar com sentimentos como perda e morte, o curta If there be thorns (Michael Robinson, 2009) não consegue uma comunicação ampla com o espectador por centrar-se em um universo extremamente denso e intrincado. Uma obra para se ver uma vez para ser sentida, mas para se rever para ser compreendida.

Voltando ao ar debochado, a paródia dos filmes trash, o curta Health – We Are Water (Eric Wareheim, 2010) mescla linguagem de HQs e clichês do filme de horror – em slow motion, uma garota corre por uma floresta, sendo perseguida por um assassino –, mas propondo uma distorção que o eleva ao escracho total dos slash movies. Uma montanha russa de emoções - do medo ao riso – cujo único propósito é divertir.

Por sua vez, a narrativa linear de Jesusito de mi vida (Jesus Perez-Miranda, 2009) expõe a relação de uma criança com a religião: pouco antes de dormir, um menino sente vontade de ir ao banheiro, mas, por ter medo do escuro, reza a Jesus para que Ele tire sua vontade de urinar. Enredo, direção e interpretação coesos e sutis em uma obra mais esquecível do que tocante.

Caminhando na contramão dos trabalhos anteriores, com a técnica de animação impressionante, Dot (Sumo Science, 2010) lança seu espectador em êxtase para um mundo de aventuras que acontece num cesto de novelos, agulhas e retalhos, gerando um retrato alucinante e imaginativo das possibilidades infinitas da arte cinematográfica.

Propondo um olhar mais reflexivo e empregando belamente uma fotografia em preto e branco e elementos de teatro de formas animadas, El Paraiso de Lili (Melina Leon, 2009) tem como protagonista uma garota que começa a se revoltar com “sistema” que governa o Peru de 1988. Singelo e sincero, ainda que pareça um curta perdido, quando se pensa na temática do programa.

Finalizando a mostra internacional, o curta Fear Thy Not (Sophie Sherman, 2010) mostra o percurso de uma mão que guia seu corpo rumo ao desconhecido, cantando uma música como se fosse uma âncora de segurança em meio à escuridão. Um cinema que trata de sensações quase táteis, ainda que pouco desenvolvido.

A alteração dos estados emocionais proposta pelo programa parece ir além das temáticas das histórias que estão sendo contadas, mas permear a experiência cinematográfica do público daquela noite, que se percebia com uma variedade de sensações – riso, tristeza, medo, reflexão, êxtase etc – em poucos minutos.

Janela Crítica - BRA 06 – Estamos Todos Juntos


Refletindo sobre laços familiares feitos ou desfeitos, o programa incluiu curtas que empregavam diversas técnicas a fim de trazer à tona sentimentos como saudade, compreensão e até humor. Todos eles, conectados de alguma forma à relação da infância com o protótipo de mundo que encontra no microcosmo do seu lar.

Ensolarado (Ricardo Tagino, 2010), o primeiro curta da noite, versa sobre a trajetória de uma menina que mora no sertão castigado pelo sol, cujo desejo de fugir para um lugar diferente e a descoberta de uma forma de fazê-lo procuram ocultar o que está mais evidente na narrativa: a saudade que se seguirá após a partida da menina para outro lugar. O trabalho com não-atores traz um frescor e uma veracidade imensa ao curta, ao contrário do emprego das cores desbotadas e dos close-ups extremos, que oferecem, paradoxalmente, uma textura árida que enfatiza o discurso da obra.

O segundo curta-metragem – Avós (Michael Wahrmann, 2009), que já havia sido exibido na noite de abertura – trata das relações entre um neto e seus avós: um olhar carinhoso e compreensivo sobre aquelas pessoas que parecem tão confiantes e tão frágeis ao mesmo tempo. Uma direção forte sem ser invasiva e um roteiro que toca pela sutileza com que aborda um relacionamento distanciado no tempo, mas não na presença física. Enquanto que, na abertura, seu foco pudesse ser a relação de amor com o cinema e a possibilidade de olhar para si mesmo, quando o vemos neste programa, privilegia a observação das relações de afeto que existem naquela casa, ainda que veladas.

Da melancolia do curta anterior, parte-se para a descontração do registro de um dia de brincadeiras em Perto de Casa (Sérgio Borges, 2009) -, onde podemos observar a espontaneidade da criança, que vê naquele monte de areia a infinitude do universo e muito mais: um modo de lidar com as surpresas que encontramos e os desafios que propomos a nós mesmos, mesmo que seja somente brincar pelado. Um trabalho que seria facilmente encontrado em sites como Youtube®, mas que ganha neste programa um status de arte do cotidiano, de liberdade criativa nos momentos prosaicos.

Retornando a um painel mais dramático das relações familiares, o público se emocionou com um curta sobre uma saudade de quem não se conhece, sobre uma tentativa de idealizar para si uma mãe, a partir de um punhado de cartas. Assim se pode definir o trabalho da criadora de Querida Mãe (Patrícia Cornils, 2009), um registro audiovisual da busca engendrada por ela pela história de sua mãe, Zélia Maria. Mesmo que, de início, caminhe um pouco confuso – pela construção pouco fluente entre leituras de cartas e depoimentos -, o espectador acompanha sua jornada até um momento-chave, quando a diretora chora durante a locução de uma das cartas e acontece uma empatia imediata: a descoberta de uma vida anterior a si mesmo e a possibilidade de compreender seu lugar no mundo tocam profundamente o público presente.

Finalizando a noite com uma animação que emprega a técnica de rotoscopia, o curta Balanços e Milkshakes (Erick Ricco e Fernando Mendes, 2009) oferece ao espectador uma história terna que exibe o desabrochar de um relacionamento entre duas crianças. O diretor consegue ir além do que as imagens lhe propõem e, se, em alguns momentos, a narração parece confusa e redundante, é por que ela deseja conduzir seu público pela construção daquela poética infantil da maneira mais clara possível.

Ainda que pareça ter sido pensado no relacionamento de núcleos de parentesco, este programa une todas aquelas histórias em uma única biografia: a do universo, onde todos nós - crianças, avós, mães, pais, irmãos, amigos, parentes distantes etc – estamos juntos na construção de um universo que se estende além de nós mesmos e se conecta com o eterno e o fugaz ao mesmo tempo.

14/11/2010

Janela Crítica - INT 02 – Os Laços que nos Separam


Versando sobre a união / desunião entre pessoas e sobre as formas em que estes estados podem se configurar, os diversos curtas desta mostra equilibram-se entre narrativas convencionais e projetos contundente e experimentais.

Com toques de melodrama, Homecoming (Kwok Zune, 2009) acompanha os infortúnios que cercam a vida de Charlie, que, desejando sustentar seus filhos, trabalhou durante vinte anos em Hong Kong, mas terminou por acreditar que o dinheiro que lhes enviava demonstrava o amor que sentia. Contudo, ao descobrir que Rex, seu filho, engravidou sua namorada e deseja viver sua vida de forma independente, ela começa a perceber a falha que cometeu durante todos aqueles anos. Com uma linguagem convencional, Zune deixa seus personagens dominarem a história, o que conseguem fazer com propriedade, ainda que o roteiro ressoe clichês que estamos acostumados a acompanhar.

Os fluxos de informação e conexão são tema do experimental Wireless in the world 2 (Timo Arnall, 2010) , que, valendo-se de efeitos especiais, expõe círculos de conexão nos lugares por onde a câmera passeia, gerando uma metáfora visual que pouco se desenvolve através do enredo e da direção, mas se encerra em sua idéia primordial.

Trazendo sua filha como protagonista em um curta singelo e sincero, A Bike Ride (Bernard Attal, 2009), Bernard Attal utiliza-se de sua própria biografia para falar sobre uma garotinha que aprende a lidar com as mudanças com leveza. Vendo seus pais se separarem, Nina anda com uma expressão triste, mesmo passeando de bicicleta com seu pai, e ouve sua voz serena tentando lhe oferecer formas de lidar com a realidade. Aos poucos, a garota consegue abrir-se diante das possibilidades e entraves que as situações da vida proporcionam e a desviar-se daquilo que parece fazê-la desviar-se do seu caminho, algo mostrado com sutileza pela talentosa atriz mirim e pelo habilidoso diretor.

Em Unplay (Joanna Rytel, 2009), vemos inicialmente um namorado sabendo a respeito de uma traição que sua namorada fez com seu amigo e desejando manter o controle da situação ao dizer que foi ele mesmo que planejou a transa entre os dois. No entanto, a moça acredita se revelar feminista ao dizer que foi ela quem planejou transar com ambos, mas, mesmo no domínio da sua sexualidade, não se pode acreditar que esse ato de “revolta” de fato favorece a igualdade entre homens e mulheres da melhor forma.

Mesclando técnicas de animação e live action, Unicycle film (Thomas Hicks, 2009) favorece a poesia visual ao exibir o caos da movimentação constante e o contraponto da tentativa de se conectar profundamente a alguém, longe da mecanicidade e da falsidade do cotidiano.

Propondo um olhar diferenciado entre a separação conjugal e as conseqüências deste ato através do olhar da criança, Videojuego (Dominga Sotomayor, 2009) expõe um infante que joga constantemente tênis no seu videogame, enquanto observamos seu pai empacotar caixas com seus pertences e deixar o lar. O menino pouco se importa com o rompimento definitivo daquele laço, mas difunde sua energia diante do jogo, não como uma atitude de revolta ou desprezo pela situação em seu entorno, mas uma tentativa de distanciamento da dor emocional que surgiria por causa daquela situação. A dissolução daquele laço familiar lhe afeta tanto que sua única solução é distanciar-se dele ao máximo, a fim de não se machucar com seus próprios sentimentos.

Janela Crítica - INT 01 – Intervenções


A ressignificação de um espaço, de um contexto a partir de pequenas ou grandes mudanças. Assim se pode pensar a intervenção, como ocorre nos curtas-metragens desta mostra competitiva.

Brincando com a ficção científica dos anos 50, Synchronisation (Rimas Sakalauskas, 2009) mostra, com a movimentação incomum de cenários dentro de um palco real, um olhar ao mesmo tempo sagaz e pueril sobre o cotidiano de prédios e estruturas banalizadas pelo cotidiano. Momentos de tranqüilidade e contemplação diante de uma tela que parece nos fazer sonhar com a realidade.

Baseado em uma história real ocorrida na Constantinopla de 1910, Chienne d’histoire (Serge Avédikian, 2010) utiliza-se da pintura para construir um curta doloroso em sua temática e estética. Pinturas em aquarela e fotografias em preto e branco se misturam para construir um clima dramático e tenso para a história que cerca a morte de milhares de cães - do considerado irracional e inútil para aquela sociedade.

Utilizando efeitos especiais sobrepostos a imagens reais que mostram o cotidiano futurista e o posterior encontro entre um rapaz e uma moça, o curta Augmented City 3D (Keiichi Matsuda, 2010) propõe ao espectador um questionamento sobre a definição de uma conexão real / presencial quando é o virtual que termina auxiliando nossa relação com ele.

Mostrando as intervenções de um pai e um filho com as paisagens, objetos e entre si, The Insurrectionists Progression (Sylvie Zijlmans e Hewald Jongenelis, 2009) parece questionar o absurdo do consumo, do acúmulo de bens na sociedade contemporânea, quando tudo aquilo que possuímos parece ser maior do que nossa essência e nos distancia da relação com o outro, prendendo-nos a um ciclo vicioso onde quem muda são nossas roupas, nossos objetos, mas nós terminamos sempre os mesmos.

Tratando da dificuldade de um homem pouco letrado em compreender a letra de uma música em outro idioma, Shoum (Katarina Zdjelar, 2009) reflete de maneira descontraída sobre o ilógico entre a formação do fonema e da gramática, da comicidade que emerge a partir do considerado ridículo, da perfeição da música na mídia em contraponto ao cântico espontâneo. O que pode ser considerado absurdo ou não.

Apresentando belíssimos movimentos de câmera e enquadramentos em diversos espaços internos de uma Índia que abre sua intimidade diante do público, Gaarud (Umesh Vinayak Kulkarni, 2009) mostra-se como uma pagina aberta onde o vazio dos espaços, do tempo, das pessoas e da vida paradoxalmente preenchem a tela. Enquanto algumas vidas se esvaziam, outras procuram se completar com a esperança de se religar ao divino, na tentativa de retornar à essência de onde viemos.

Para encerrar o programa, traz-se Big Bang Big Boom (Blu, 2010), que, utilizando-se de diversas técnicas e objetos – pedra, canos, furgões, lixeiras, bola, luvas etc -, propõe um novo olhar sobre o velho e aparentemente desgastado – seja os objetos que usa ou a própria temática da evolução. Um olhar ao mesmo tempo maravilhado e cético sobre o que temos feito com o que temos nas mãos.

Janela Crítica - BRA 02 – Guiados por Vozes


Pensando no poder transformador que a música exerce sobre seus ouvintes, os curtas a seguir dispõem das mais diversas formas para traduzir esse sentimento de influência que ela exerce sobre nós.

No documentário com toques ficcionais Áurea (Zeca Ferreira, 2009), vemos e ouvimos uma cantora de bar apaixonada pelo seu ofício contar e cantar sua história equilibrando-se entre depoimentos e reconstituições de época em que ela e seus amigos de carreira interpretam a si mesmos. Esta declaração de amor à música, no entanto, permanece como uma experiência excessivamente estética que termina perdendo em espontaneidade: os enquadramentos, fotografia, figurino e posicionamento dos depoentes milimetricamente planejados não auxiliam na emergência de um sentimento verdadeiro diante da câmera. Apenas observamos uma versão que aquelas pessoas criaram para si mesmas, pois, talvez tão preocupadas com suas próprias imagens na tela, tenham esquecido de mostrar seu eu mais verdadeiro.

Apropriando-se do tema da arte como uma forma de expressão e contestação, RAZ (André Lavaquial, 2010) desloca a intenção original do diretor – tratar dos adolescentes romenos que cantam nos metrôs em Paris a fim de sobreviver – para outra realidade: as favelas no Rio de Janeiro. Enquanto luta para construir uma vida diferente para si mesmo, RAZ perde seu rádio no meio da cidade e encontra, através das estátuas vivas, outra ferramenta - uma vitrola e discos de vinil - que pode lhe proporcionar a sobrevivência. Com imagens que mesclam sonho e realidade com muita propriedade, Lavaquial realiza uma jornada musical por diversos ritmos ao longo de um dia na vida de um adolescente que deseja simplesmente sair, escapar de uma vida de desconforto e melhorar. Contudo, talvez seu impacto fosse maior se sua proposta original fosse executada, já que esta estratégia de sobrevivência já se tornou usual no Brasil, mas observar este tipo de trabalho na França é algo diferente e que causaria um estranhamento que favoreceria a mensagem do curta.

Trabalhando novamente com a poesia imagética e sonora que a Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos (Camilo Cavalcante, 2009) proporciona, Camilo traz um painel do sertanejo sofredor e trabalhador que encontra na religiosidade uma esperança de seguir em frente, ainda que ele não esteja distanciado do restante do mundo – como atesta o final do curta. Bela fotografia, montagem e som, mas com uma representação do Nordeste que já estamos acostumados a ver.

Versando sobre a incomunicabilidade entre duas pessoas que falam idiomas diferentes e o surgimento de uma amizade entre elas, o curta A Amiga Americana (Ivo Lopes e Ricardo Pretti, 2009) termina por se tornar um retrato simplista que pouco oferece ao seu público. Seu diretor parece não confiar na imagem e na montagem e subestima seu espectador com letreiros que explicam em demasia o enredo, que, por si só, já apresenta falhas graves na construção das personagens e das situações, algo que as atrizes também não conseguem melhorar. E, ao final, num ponto de virada abrupto e deslocado, Paris afirma que aprendeu muito com Thais e seu filho Ian sobre formar uma família e criar laços – sendo que, em nenhum momento anterior, ela parece demonstrar alguma ‘necessidade’ de aprendizado, tornando seu desenvolvimento frágil –, mas vai embora para procurar praias e não algum relacionamento rompido ou novo. Uma proposta inicial interessante, mas que parece ter se perdido ao longo da execução do trabalho.

13/11/2010

Janela Crítica - BRA 01 – Salvar Arquivo Vol. 2



Transportar imagens e sons além do tempo e do espaço, ressignificando seus contextos históricos, políticos, culturais, mas, acima de tudo, afetivos. Desse modo, parece se configurar a Mostra Competitiva BRA 01 – Salvar Arquivo Vol. 2, que trabalha com arquivos previamente realizados, sejam antigos ou novos.

Trabalhando com o registro dos primeiros anos do chamado Cinema Silencioso em Recife, Janela Molhada (Marcos Henrique Lopes, 2010) equilibra imagens de arquivo e depoimentos de pesquisadores de cinema, atores da época e restauradores das obras em questão, a fim de esmiuçar ao espectador as relações que se estabeleciam através desse nascimento do cinema na Veneza Brasileira. Um documentário que não chama atenção sobre si mesmo, mas permite que seu objeto fale por si.

O segundo curta da noite – Fantasmas (André Novais Oliveira, 2009) – mostra-se como um convite à intimidade de dois amigos, que, partindo de uma conversa banal, terminam por conduzir o espectador por um caminho onde a dor/desejo do protagonista se revelam através do que não está na tela, mas que se espera que esteja. A história não acontece diante da câmera, mas na relação que seu diretor estabelece com a imagem.

Em contraponto/complementação a este curta, surge Supermemórias (Danilo Carvalho, 2010), que pode se definir como um registro familiar e afetivo em Super-8 de memórias, pensamentos e da identidade de uma época – especificamente na Fortaleza dos anos 70. O trivial, o desgastado, o ruído, a musicalidade, o exibicionismo diante da câmera reverberam uma época onde a presença da câmera alterava consideravelmente o posicionamento das pessoas filmadas, como se atuassem diante dela. E, se hoje vivemos uma evolução da nossa relação com a imagem, como os nossos vídeos caseiros falarão a nosso respeito daqui a 40 anos?

E fechando esse ciclo do pensar sobre a imagem como registro, surge Aeroporto (Marcelo Pedroso, 2010), que, equilibrando fotos de sua protagonista a observar as pessoas que passam no aeroporto e as “cartas” que narram para o espectador, mostra um olhar particular sobre os viajantes e desvenda não somente as memórias que eles carregam dentro de si, mas também os rastros que deixaram por onde passaram.

Essa mostra revela um pouco sobre nossas tentativas de eternizar o efêmero, como se não somente as imagens fossem transportadas através do tempo e do espaço, mas também nossa consciência, na tentativa de compreendê-la/compreender-nos um pouco melhor.

12/11/2010

Janela Crítica - 12.11 - Abertura


Uma noite de celebração ao cinema, à arte, à humanidade. Assim se pode sintetizar a abertura da III Janela Internacional de Cinema, que nos trouxe curtas-metragens e um longa que fazem o espectador repensar-se como artista... de uma câmera na mão.

O primeiro curta-metragem – Avós (Michael Wahrmann, 2009) – trata-se de um olhar carinhoso e nostálgico tanto sobre uma época, um cotidiano que não se vive mais como sobre o próprio cinema e sua capacidade de nos permitir olhar para nós mesmos e nos preservar, oferecer a possibilidade de ser um pouco eterno. O segundo curta – Big Bang Big Boom (Blu, 2010) – propõe uma reflexão dos fatos e conseqüências que cercam a evolução. Utilizando diversos objetos cotidianos e mesclando técnicas diferentes de animação – desenho 2D, stop motion –, o diretor nos oferece uma visão ampla do que pode-se chamar desenvolvimento: um progresso não somente da humanidade, mas também da própria arte. Se, de início, o espectador pode se maravilhar com as infinitas possibilidades de expressão que a animação/tecnologia proporciona, ao final do curta, permanece um questionamento: “A que preço temos evoluído?”.

No longa-metragem da noite – Além da Estrada (Charly Braun, 2010) -, descobre-se um contador de histórias apaixonado por suas personagens, que almeja vasculhar cada movimento seu, a fim capturar seus instantes mais verdadeiros. Seguindo seus protagonistas, Santiago e Juliette, ao longo da estrada e do romance que se inicia entre eles, Braun propõe uma experiência cinematográfica que conhece seu ponto de partida, mas caminha rumo ao desconhecido, ao inesperado do mundo real. Se o público reconhece o enredo das comédias românticas hollywoodianas desde o princípio, é porque é desse elemento humano que elas se valem para construir tramas que ressoam clichês e situações que não estão vivas dentro de nós. No entanto, Braun propõe ao espectador um painel sincero e singelo de personagens que redescobrem sua humanidade ao decidir escolher um caminho espontâneo e imprevisível para suas vidas. O canto do coração, como atesta uma das personagens. A estrada do próprio coração.

11/11/2010

Autodestruição e Violência Prosaica: The Big Shave


Desde o título, The Big Shave (Martin Scorsese, 1967) mostra-se um curta superlativo, que mal consegue se conter em seus seis minutos de duração, permanecendo por tempos após a projeção, revelando, desde cedo, o cineasta que nos entregaria obras como Cassino (1995) e Alice Doesn't Live Here Anymore (1974).

Aparentemente versando sobre o banal ato de se barbear, o curta revela um dos temas que se encontrarão posteriormente na filmografia scorsesiana: o temor/anseio de autodestruição de seus protagonistas em meio a um mundo de violência prosaica e cotidiana. Close-ups extremos de um banheiro asséptico denotam um olhar diferenciado sobre aquele espaço, que, através de seu herói pouco convencional, será palco do incômodo do inesperado: o homem começa a mutilar seu próprio rosto com uma navalha, deixando o sangue deslizar pela sua face inexpressiva e sobre a porcelana branca da pia límpida. Cortes abruptos e uma trilha sonora desconcertante pontuam a violência inconseqüente e gráfica que o homem infringe sobre si mesmo com sua expressão tranqüila, restando ao espectador a incompreensão e a impotência diante do que acabou de presenciar. Amar ou odiar parecem verbos irrelevantes em uma experiência cinematográfica tão particular, mesmo que este espécime pareça ter se desgastado após tantos anos de evolução e sofisticação do happening cinematográfico.

Assim como Henry Hill (The Godfellas, 1990), Howard Hughes (The Aviator, 2004), Travis Brickle (Taxi Driver, 1976) e tantos outros ícones da cinematografia de Scorsese, nosso protagonista caminha inconscientemente rumo a sua autodestruição, à quebra da lógica, do contínuo. Sua indolor trajetória reflete-se, paradoxalmente, em nossa angústia diante do que é visto, pela identificação imediata com o receio/desejo de interromper nossa letargia cotidiana, oculta em vicissitudes diárias que, se aparentemente nada revelam sobre nós, tornam-se refúgio do nosso inconsciente, de nossa humanidade.