04/02/2013

Django Livre - … e assim Tarantino ficou mainstream

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Em meados de 92/93, Tarantino surgiu no cinema independente americano como um outsider, alguém que conseguia fazer cinema fora das majors e imprimia seu estilo em cada fotograma, com diálogos criativos, tramas que referenciavam diretamente ao cinema (principalmente os westerns, filmes de gânsgters e etc.) e muito sangue e violência. 

Quando seu Pulp Fiction faz história ao ser premiado com a Palma de Ouro em Cannes e com o Oscar de melhor roteiro original, difundia-se ali um cineasta que usava o pop para questionar vingança, lealdade, mas, antes de tudo, para humanizar as figuras estereotipadas que passeavam por aquelas tramas. A primeira vez que assisti a Pulp Fiction, por exemplo, eu não conhecia muitas das referências que o cineasta citava e como eles eram influentes na cultura pop norte-americana, mas o frescor daquela obra na vida cinéfila se deu pela humanidade que todos aqueles personagens destilavam. Mia Wallace, Vincent Vega, Jules Winnfield, Butch e sua galeria de personagens não era simplesmente gângsters ou pessoas do “submundo”: por mais que funcionassem como alter egos do próprio diretor, eles apresentavam certo frescor e, repito, humanidade suficiente para contarem uma piada sem graça, serem estuprados em uma sala fechada por dois idiotas, atirarem por acidente no rosto de algum capataz e assim por diante.

E agora, vinte anos depois dessa ascensão meteórica, Tarantino entrega Django Livre (2012), em que ele faz referência direta ao western spaghetti para contar a história de Django, um escravo liberto que se torna caçador de recompensas e se vinga dos seus algozes para encontrar sua amada Broomhilda. A trama é somente um pretexto para os habituais diálogos rápidos e cômicos de Tarantino, que aproveitam para cutucar a sociedade norte-americana contemporânea ao ironizar a condição do negro, que, aos olhos deles, parece resolvida quando o trabalho escravo não existe mais (em teoria). No filme, nem os brancos nem os próprios negros aceitam que Django seja tratado de forma diferente dos outros escravos: os primeiros, por motivos óbvios; já os segundos, surpreende mais justamente por Django não funcionar como inspiração, mas como motivo de inveja, desprezo etc. Ou seja, os negros do filme de Tarantino – principalmente Stephen, o criado vivido por Samuel L. Jackson – não aceitam um 'igual' alçando uma condição 'superior' a deles, preferindo manter o status em que o branco se mantém como superior. Isso, de certa forma, mostra-se como uma das perguntas que Calvin Candie faz no filme, sobre porque os escravos não se revoltavam contra seus algozes já que se apresentavam em maior número, força etc., podendo formar um movimento que mudaria a situação. 

Talvez esta seja a mesma pergunta que nós, como eleitores, por exemplo podemos nos fazer em relação ao modo como mantemos nosso status ao alçar ao poder políticos incompetentes e desinteressados por nossas causas. De certa forma, Tarantino também culpa o submisso pela sua submissão, mas o faz com sarcasmo e bom humor, demonstrando a pateticidade de todas aquelas convenções, mostrando ser uma questão mais complexa do que as reclamações em relação às tantas referências ao 'nigger' (ou 'crioulo') que levaram a Spike Lee a acusar o filme de racismo. (ATENÇÃO: ESTA FRASE CONTÉM SPOILERS) Na verdade, ele parece perceber tudo isso como um certo fetiche, visto que, em certo momento do longa, Django é capturado e, nu em seu cativeiro, tem a ameaça da castração iminente por um dos capangas de Candie, que, depois que seu mandante desiste do castigo, só lhe resta acariciar brevemente o membro avantajado de seu refém.

A despeito desta discussão que o filme carrega, um dos problemas de Django Livre reside justamente no seu humor, que mesmo funcionando na maior parte do tempo, parece ter ficado meio datado, já que, depois que os diálogos pop de Tarantino ficaram mainstream, mais e mais produtos começaram a pipocar com este estilo. (Posso dizer até que a cena do gorro da Ku Klux Klan me lembrou um dos vídeos do Porta dos Fundos – a saber este aqui.) Se vinte anos atrás, este humor era novidade, hoje a concorrência é bem maior e o diretor parece que dormiu no ponto, apesar de, certamente, fazer um filme bem mais divertido do que a maioria do que aparece no circuito comercial. Seu pastiche jamais se sobrepõe à narrativa e nem aos personagens que já nascem marcantes, como o Dr. Schultz de Christoph Waltz, o Calvin Candie de Di Caprio e o já mencionado Stephen de Samuel L. Jackson. Entretanto, já que ele não entrega algo como a não-linearidade desavisada de Pulp Fiction e Kill Bill ou a reescrita da História de Bastardos Inglórios (como afirmo neste texto), este longa parece figurar nos filmes menores de Tarantino, como Jackie Brown e à Prova de Morte. 

(atenção: SPOILER ALERT) 


Outro ponto a ser tocado reside também no ego do roteirista e diretor, já que, se, em Bastardos, a suspeita de que a última fala - "Esta é minha obra-prima!" - parecia que o próprio Tarantino dizia a si mesmo, em Django, a supervalorização que Tarantino se dá emerge na sua presença como um capanga no terceiro ato do filme, numa participação que parece meio forçada e até mesmo preguiçosa, assim como o tiroteio que acontece no clímax se faz de forma gratuita diante do caminho que a narrativa seguia. Enquanto que o tiro na cabeça de Marvin em Pulp Fiction, por exemplo, explorava a pateticidade e a estupidez que humanizava o gângster vivido por John Travolta, o tiro de Schultz e sua consequente morte soam não somente como uma tentativa de clímax desnecessária, mas também como uma “solução” rápida para distrair o espectador e conduzi-lo à catarse necessária aos “filmes de vingança” tarantinescos. Contudo, apesar destes defeitos, é um longa que merece ser conferido pelos fãs e não-fãs deste que ainda é um diretor que causa muito frisson todas as vezes em que lança um longa novo.

03/02/2013

O Mestre - Pertencer através da fé?

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No texto sobre As Aventuras de Pi, tratei um pouco das relações que Ang Lee traz em seu filme sobre a fé que o personagem Pi desenvolve durante sua jornada com Richard Parker. Interessante como Paul Thomas Anderson, em seu O Mestre (2012) estabelece conexões que complexificam a relação do homem com o que ele “acredita ser fé”. Digo acredito justamente porque Freddie Quell (personagem de Joaquin Phoenix) parece procurar mais uma sensação de pertencimento a uma causa que lhe tire de sua vida “desregrada”, uma meta maior do que seu egoísmo, sua raiva do mundo.

Enquanto que Pi defende certa suspensão da racionalidade para que os sujeitos comecem a expandir seus horizontes para o que está além do visível, o discurso deste longa favorece mais a ideia de tomar consciência de si mesmo para tomar o controle sobre sua vida. De que forma PTA faz isso? Vamos á narrativa: Freddie Quell é um marinheiro que, depois que termina a Segunda Guerra Mundial, tenta reconstruir sua vida. Traumatizado por sua experiência no campo de batalha, ele sofre com ataques de ansiedade e violência e não controla seus impulsos sexuais. Em uma de suas atitudes imprevisíveis, ele conhece Lancaster Dodd (Phillip Seymour Hoffman), o líder carismático de uma organização religiosa, chamada A Causa. Aos poucos, ele começa a se envolver com o sujeito, tornando-o o seu mentor e centrando suas escolhas nas ideias de vidas passadas, cura espiritual e controle de si mesmo que Dodd tenta fazê-lo compreender. Aos poucos, Freddie passa a depender cada vez mais deste estilo de vida e das ideias de seu Mestre, tornando seu pertencimento àquele grupo quase uma obsessão.

Relacionando esta sinopse básica com alguns dos filmes anteriores de PTA, por exemplo, em Boogie Nights, Sangue Negro e Jogada de Risco, temos este sujeito meio que deseja pertencer a um status – seja o cinema pornô, a riqueza pelo petrôleo ou o mundo da jogatina – e tem um mentor para ajudá-lo a alcançar este status – Dirk Diggler tem Jack Horner; John tem Sydney; e Daniel Plainview tem a si mesmo, já que planeja ser um ser isolado do mundo. Se, para a sociedade, Quell representa tudo que é emocional, anárquico e animalesco, Dodd representa tudo de virtuoso, aqueles que nos regram, nos podam, nos limitam e, enfim, procuram nos anular para que vivamos “pacificamente” uns com os outros. Todos estes personagens supracitados precisaram de mentores que os ajudassem a alcançar seus objetivos de pertencer àquela causa citada anteriormente, mas, com Freddie, isto se torna quase uma obsessão inquestionada, já que ele deseja fazer parte de algo que dome seu id, representando vários daqueles fieis que, de forma inconsciente, começam a procurar diversos modos de seguir as regras de conduta, ter as experiências que o Mestre tenta lhes fazer atravessar, mas não param para refletir a relevância daquela experiência para sua própria vida.

Dodd, na verdade, quando fala que deseja que todos aqueles fieis tenham controle sobre si mesmos, cai na falácia – proposital, diga-se de passagem - de fazer todos eles dependentes de seu discurso, controlando a todos através de suas palavras, de suas estratégias de aprisionamento. Mas como os fieis encontram-se deveras envolvidos por esta atmosfera emocional em que existe pouco espaço para explicações racionais, não conseguem se desvencilhar da crença que seu Mestre propala com tanta veemência e crença absoluta. O mais assustador em Dodd é que ele não crê em uma causa maior do que a si mesmo, mas crê em sua própria causa e faz com que os outros creiam nela com tanta ou maior devoção do que si. Mesmo que tenha feito relações com a Cientologia neste longa, estas conexões podem facilmente ser estendidas a quaisquer religiões, principalmente as cristãs neopentecostais, em que o carisma tem trazido mais fieis do que a fé em si.

Com uma elegância habitual nos seus filmes, ele deixa o dinamismo de Boogie Nights e Magnólia de lado para investir na câmera focada nos personagens como em Sangue Negro. Seus personagens parecem estar vivos diante do público, tendo Joaquin Phoenix à frente da densidade com que Hoffmann e Adams complementam essa jornada rumo a si mesmo. A trilha sonora de Jonny Greenwood incomoda com seus acordes e dissonâncias como em Sangue Negro, a fotografia clara e suja de Mihai Malaimare Jr traz texturas mais humanas aos personagens e a direção de arte que caracteriza bem o período histórico e os tons claros que escondem a crueldade e paixão de seus protagonistas. Todos estes elementos contribuem para fazer deste longa obrigatório para discutir o poder das religiões neste novo século, já que, quando as escolhas individuais começam a parecer mais claras e não precisamos mais depender das coletivas, começo a me questionar quais seriam as minhas causas, que escolhas e de que modo elas me conectam com o que acredito ser eterno, sem deixar de me conduzir pelo efêmero.