28/03/2009

A revolução por um propósito em Antes do Anoitecer


Reinaldo Arenas revolucionou como contra-revolucionário. Não se entregou aos mandamentos ditados durante o domínio de Fidel Castro em Cuba. Através de suas palavras, pôde conscientizar e emocionar muitos.

Foi preso, acusado de crimes que não cometeu. Tudo por causa de uma vida de entrega a suas escolhas. Sua arte, suas paixões. Seria possível viver uma vida sem paixão? Sem a busca ardente pela realização de um propósito que possa estar acima de nós mesmos? Reinaldo não acreditava que este propósito estava tão distante de si, mas que poderia estar muito mais perto se o crêssemos estar assim.

Sofreu bastante para poder se permitir falar o que pensava, viver o que vivia. Mesmo que não concordemos com todas as decisões que tomou para sua vida, é inegável sua importância para perceber o quanto somos negligentes com nossos princípios quando nos permitimos calar diante de tantas circunstâncias talvez até mais leves do que Arenas enfrentou.

Schnabel, sabiamente, cria Antes do Anoitecer oscilando facilmente entre o poético e o contundente, mas deixando espaço livre para que seu personagem cative o público. Procurou fazer suas as palavras daquele jovem escritor. E que nós possamos refletir sobre o que sua experiência pode nos dizer.

O caótico e o solitário em Não Estou Lá


Tendo em seus seis protagonistas o mesmo personagem - Bob Dylan -, o longa de Todd Haynes - Não Estou Lá - resgata as sensações e os sentimentos do famigerado cantor ao longo de sua vida e carreira, num exercício de direção estupendo.

Em contrapartida à maior parte das cinebiografias, Haynes opta por trazer uma visão extremamente pessoal do seu objeto, trazendo seis atores para encarnar uma de suas facetas: Cate Blanchett, Heath Ledger, Christian Bale, Richard Gere, Marcus Carl Franklin e Ben Wishaw. Mas uma unidade procura trazer o sentido de sua empreitada: mesmo que Dylan prossiga em diversas verdades ao longo de sua carreira, talvez o que o mantenha seguindo seja sua busca solitária pelo caos.Não pela desordem no mundo, mas a consciência da necessidades de mudança nesse mundo.

A impossibilidade de manter uma ordem no seu universo, Dylan procurava mudar as pessoas ao se expressar para elas, ao explodir de dentro de si tantos sentimentos e atitudes - por vezes, contraditórios. Haynes, através de seus roteiro e edição complexos, leva seu espectador talvez ao mesmo universo de seu protagonista - ao mesmo tempo como documentário, como musical, como drama biográfico ou histórico.

Nesse trabalho, um diretor e um personagem encontram-se e dialogam entre si, deixando talvez um pouco sua solidão, mas investindo no seu caos.

Orgulho e Preconceito e o diretor-autor



Ritmo, beleza e música. Uma celebração dos nossos ritmos, dos nossos corações, de como podemos seguir por tantos descaminhos até encontrar um destino que nos satisfaça. As desilusões surgem talvez para testar nossa persistência e capacidade de merecer essa recompensa no desfecho. A emancipação feminina já ganhou inúmeros olhares ao longo dos anos, mas Jane Austen é sempre bem-vinda, ainda mais quando tão bem traduzida nas imagens de Joe Wright para o longa Orgulho e Preconceito, conseguindo renovar a crença no amor, sem apelar para diálogos e cenas melodramáticos excessivamente, mas com a sinceridade e a veemência de seu elenco.

O longa mostra os jogos de amor e interesse numa Inglaterra ainda condenada à decadência de sua nobreza, sendo a única salvação para tais situações o casamento arranjado no interesse econômico. Nossa protagonista, Elizabeth, no entanto, batalha contra as convenções e decide se casar por quem se encontrar apaixonada. Entre as idas e vindas, sabemos desde o início seu desfecho, mas o que importa é o desenrolar da trama e maneira como a direção discreta de Wright permite que as verdades contidas no romance apareçam naturalmente.

Sem tentativas de atualizar desnecessariamente a trama ou de olhar cinicamente os sentimentos expostos através de suas personagens, Wright consegue entregar um longa digno e forte - principalmente devido à escolha de sua protagonista, que, mesmo que não supere as expectativas, traz um frescor ao material humano de Austen. Alguns poderiam criticá-lo por não investir em um discurso próprio através das imagens capturadas e sua montagem, mas Wright se entrega de fato à sua habilidade: o contar histórias de maneira sincera e simples.

20/03/2009

Criancinhas e seus Pecados






Mais uma vez no caminho inverso: depois de ter contato com o excelente longa Pecados Íntimos, dirigido por Todd Field (Entre Quatro Paredes) - estrelado por Kate Winslet e Patrick Wilson -, procurei ler o livro que deu origem ao roteiro para o longa: Criancinhas, de Tom Perrotta - responsável também por Eleição, que se transformou em filme pelas mãos de Alexander Payne.

Quando vi o filme, tive uma imersão enorme na construção cuidadosa de suas personagens, que entram pedindo licença e tomam conta de nossas emoções de maneira sutil. Quando Sarah Peirce, Brad Adamson e Ronnie McGorvey cruzam a tela, somos impactados pela força de um roteiro maginificamente escrito, que compreende suas protagonistas e não tenta julgá-los e imputar neles questões moralistas e hipócritas. Seus roteirista e diretor, de fato, se importam com eles, se veem como um deles, por mais que essa verdade seja difícil de aceitar. Foi gratificante aprofundar questões que, no filme, só puderam ser sugeridas e permitir uma identificação ainda maior com o que está sendo contado.

Aprofundando questões como responsabilidade, convivência e aceitação do outro se aprofundam, o filme decide manter o tom crítico e dramático que a história possui, suavizando o tom irônico e cínico que Perrotta traz à sua narrativa. Ronnie, nas linhas de Perrotta, é um personagem que parece sofrer menos com sua condição de rejeitado e perseguido pela sociedade, por causa de suas tiradas sarcásticas direcionadas à mãe, que pouco emergem na transcrição para a tela. Field também optou por deixar de lado um aprofundamento das histórias dos cônjuges de seus protagonistas e de seus amigos, permitindo suas inserções em seus momentos mais marcantes e úteis à história.

Esse tipo de decisão valoriza a tonalidade do longa e altera a conclusão da narrativa, que, no livro, se dá de maneira também irônica, perdendo um pouco do impacto dramático que a história por si só traz. Além disso, o autor utiliza seu clímax para reunir quase todos os personagens num único espaço, tentando forçar um conflito, enquanto que, no filme, os únicos encontros são entre Ronnie e Sarah - muito forte, por sinal - e Ronnie e Larry. Contudo, Field conflui elementos em comum ao manter a narração do livro, que, paradoxalmente, aproxima e distancia o espectador de seus protagonistas. Isso se revela como um elemento estético que referencia de maneira direta aos romances que fazem parte da história, no caso Madame Bovary. Termina se tornando também um filme sobre livros, histórias e como elas podem dialogar conosco, fazendo com que nos enxerguemos nele. Sobre como podemos - e precisamos - compreender melhor a nós mesmos e aos outros.

Este é um dos raros trabalhos em que um filme consegue melhorar um livro, dialogar com o espectador e com a obra original, mas mantendo uma estética discursiva própria. Todd Field consegue esse feito com propriedade, tornando-o um dos melhores cineastas da atualidade, mesmo que tão pouco enxergado pelo público.

19/03/2009

Deixe ela entrar e a inevitabilidade do contato




Qual a possibilidade de se isolar do mundo a ponto de negar o contato com o outro? Na citação aristotélica, "O homem é um ser social", estamos intrinsecamente destinados a nos relacionar, por mais que não o desejemos ou possamos.

A delicadeza surge de maneira fantástica no relacionamento entre Oskar - um frágil adolescente perseguido na escola e que cria para si um círculo de antipatia e rejeição - e Eli - uma criatura fantástica que necessita abster-se do contato emocional com outros seres humanos -, ambos negligenciados, marginalizados pela sociedade de que desejavam fazer parte, mas cuja hipocrisia e violência - mesmo que simbólica - emergem quase aceitáveis em Deixe ela entrar, longa do sueco Tomas Alfredson.

Como sobreviver às intempéries que a própria vida dispõe à nossa frente? Bem, como atesta Eli em certo momento: "Revide". Aproveite a oportunidade para lavar sua própria alma, não deixe que a apatia tome conta do seu espírito. O revidar não está simplesmente em devolver com a mesma moeda ou intensidade, mas em se relacionar com a sua condição de ser humano e permitir-se dominar pela emoção. Talvez desse jeito, fosse possível livrar-se da violência que cometemos contra nós mesmos todos os dias.

Certos 'nãos' que dizemos aos outros podem fazer mais do que qualquer violência física, pois aprendemos a nos afirmar diante do outro e realizamos o contato tão desejado, deixando a apatia enterrada ante a felicidade da satisfação. Oskar aprende a dizer 'sim' às próprias emoções, não precisando mais ocultar-se diante de uma sociedade que o oprime. Tudo isso porque permitiu que o relacionamento entre ele e Eli fizesse parte de sua vida, mesmo com a violência com que precisavam declarar: "Eu estou aqui".

Das Cidades de Deus - Do filme para trás







Quando se pensa nas adaptações de livro para cinema, poucas vezes o público leitor fica satisfeito com o resultado final. Mas uma pergunta: como reagem aqueles que lêem o livro depois de ver o filme?

Bom, já estive dos dois lados da moeda e posso refletir um pouco sobre o processo de adaptação de filme para livro na minha cabeça. Começarei com o mais recente: Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins, roteirizado por Bráulio Mantovani e levado às telas por Fernando Meirelles. Caso típico de "experiência multimídia", entrei em contato com livro, filme, roteiro, trilha sonora etc nestes anos em que o filme fez parte de minha consciência.

Mantovani e Meirelles são responsáveis por unir num longa de duas horas a história de diversos personagens, reduzindo a trama complexa do livro - que contém inúmeros personagens e situaçõs que dificilmente seriam aproveitadas no longa como um todo. Mas algo se mantém: o espírito fragmentado, cinematográfico que Lins traz às diversas tramas, além do rápido processo de anarquia que ronda a favela ao longo dos anos.

Temos a batalha entre Zé Pequeno - no livro, Zé Miúdo - e Mané Galinha - originalmente, Zé Bonito -, além de diversas outras passagens protagonizadas por Buscapé, Barbantinho, Madrugadão, Acerola, Filé com Fritas, Laranjinha, a turma do Caixa-Baixa, que ganham mais força e detalhamento nas linhas de Paulo Lins. Mantovani, no entanto, adiciona à verve popular do autor uma ironia tipicamente burguesa, que distancia e estetiza a paixão e a violência com que estes seres marginais conduzem sua vida.

A metalinguagem esperta da narração de Buscapé não está nas linhas passionais do livro, mas fazem parte de um longo processo de autoria de Mantovani, que recria boa parte da estrutura do livro, o que favorece - e muito - na produção do longa, que se diferencia do retrato que por tantas vezes o Brasil fez de si mesmo na tela. A veia popular dá lugar ao pop, que torna excitante e quase bela a violência do longa, tamanho o trabalhar do estilo de roteirização e direção.

Os diálogos rápidos e espontâneos ainda estão lá, com adição de elementos sexuais mais violentos que o filme opta por não aprofundar. Não gostaria de entregar juízos de valor comparativos a respeito dos três contatos - com filme, roteiro e livro -, pois creio que são experiências diferentes, que demandam espírito diferentes e mente aberta para a constante recriação de uma história, seja por um escritor, um roteirista ou um diretor. E, afinal, qual seria a graça?

03/03/2009

Tomar a sua cruz = Slumdog Millionaire





Nos tempos dramáticos que a América - e, por conseqüência o restante do mundo - tem vivido, não surpreende o fato de que um filme emocionante e otimista como Slumdog Millionaire faça esse sucesso retumbante.

Um pobre indiano resolve competir no jogo de perguntas e respostas Quem Quer Ser um Milionário? simplesmente para que sua amada o veja e resolva se encontrar com ele, mas termina sendo torturado e questionado por saber todas as respostas do jogo momentos antes de se deparar com a pergunta final. De início, é provável que o espectador já consiga imaginar o desfecho da trama, mas dificilmente não se envolverá com a jornada de seu protagonista rumo à satisfação.

Com uma edição poderosa, uma fotografia deslumbrante e um roteiro simples, porém marcante, Danny Boyle constrói um longa sólido que trata da força de amor - seja ele ÁGAPE (entre Deus - ou destino - e suas criaturas); PHILOS (entre irmãos) ou EROS (entre um homem e uma mulher) - superando tudo o que cremos ser as maiores dificuldades para a realização de um sonho. As experiências de seu protagonista o levam a conhecer cada resposta do programa, sendo realmente seu destino - ou Providência Divina - estar naquele lugar, naquele exato momento. Quando pensamos que tudo o que fazemos nesta vida é carregar fardos pesados - situações difíceis que precisamos superar -, Cristo, assim como Boyle, nos leva a entender que o peso dessas "cruzes" está dentro de nós mesmos, naquilo que nos impede de seguir em frente.

Tomar diariamente as nossas cruzes e seguir em frente está em assumir a responsabilidade de cumprir um propósito na nossa existência, seja ele qual for, ter a capacidade e a autoridade para assumir uma missão aqui nesse lugar, diante de tudo aquilo que vivemos e com quem vivemos. Mesmo que, em princípio, ele não se desse conta, a missão de Jamal talvez fosse salvar a sua amada desde o momento em que se conheceram, assim como a de seu irmão seria a de salvar a ambos, entregando sua própria vida em favor dessa causa.

Por mais que beba da fonte da cultura indiana, é facilmente perceptível o grande ensinamento cristão por esta obra tão rica em camadas e tão simples na identificação com suas personagens e situações. Uma fortaleza para momentos tão angustiantes como essa economia instável, violência gritante e desespero incessante que o mundo pós-moderno tem disponibilizado como deleite para deixarmos nossa esperança de lado.