26/02/2009

Wall-E por uma sociedade menos niilista


Quando se pensa num filme infantil, talvez o primeiro recurso a ser usado sejam diálogos rápidos e simples e uma história que verse sobre a construção da personalidade através superação de conflitos. Mas, se tratando de uma das mais inteligentes produtoras de longas de animação da atualidade, a Pixar consegue inverter todas as expectativas e cria um filme que redefine os conceitos que diferenciam roteiros voltados para infantes e para adultos.

Wall-E é uma linhagem de robôs cuja serventia está em ajuntar o lixo que ocupou a superfície da Terra, numa tarefa que levará toda a eternidade e existe sem o menor objetivo prático, visto que toda a população humana mora agora numa estação espacial a anos-luz de sua antiga morada. Lá, as pessoas realizam o mínimo de esforço físico, indo da cama para o banheiro, cozinha, trabalho, piscina etc em plataformas flutuantes equipadas com telas holográficas - onde vêem televisão e anúncios 24 horas por dia - e não tem o menor conhecimento da existência do seu planeta natal.

A Humanidade, então, termina sendo formada por jovens e velhos obesos que não mantém um mínimo de contato visual ou verbal com a pessoa do lado. O responsável pelas mudanças nessa nova sociedade é o robô Wall-E, que, ao conhecer a robô Eva - enviada à Terra para procurar sinais de vida vegetal -, se apaixona e se dedica a encontrá-la quando vê que foi resgatada por um nave de volta à estação espacial.

Contando com um enredo que já não seria tão típico para crianças, o longa ainda tem a ousadia de deixar sua primeira parte quase sem diálogos, demonstrando a solidão e a falta de sentido da vida com que o robô Wall-E leva sua vida, colecionando pequenos objetos que vão dando a ele uma rotina e trazem sentimentos de apego. Quando o pequeno autômato entra em contato com as pessoas, as perseguições e as mudanças acontecem e os seres humanos passam a tomar as rédeas de sua própria vida, deixando de lado a ilusão que os mantinha passivos.

E a maneira como Wall-E transmite essa idéia ocorre da maneira mais sutil possível, recorrendo não a discursos panfletários, mas à visualização dos efeitos que o descaso com a natureza terrena e a sua própria podem causar ao ser humano.

Kung-Fu Panda contra o estigma da obesidade


Como contruir um longa infantil que trate sobre a obesidade sem aderir aos modelos básicos dos clichês do "gênero" - meninos(as) obesos que fazem de tudo para perder peso e entrar nos padrões estéticos da sociedade e descobrir que os valores internos são os mais importantes, aceitando-se como está?

A resposta pode ser encontrada na animação Kung Fu Panda, novo longa da Dreamworks, que investe numa narrativa clássica, mas infestada de referências aos filmes de arte marciais, mas adequados aos clichês da indústria cinematográfica hollywoodiana. Na narrativa, encontramos Po, um panda que sonha em se tornar um mestre da guerra, integrando o time dos Cinco Furiosos - composto por Tigresa, Macaco, Louva-a-deus, Víbora e Garça (os cinco estilos de kung-fu) - e sendo discipulado pela chinchila Shifu.

De início, o panda, animal típico da China, poderia ser o protagonista mais improvável para um filme de artes marciais - da mesma maneira que um rato o seria para um filme sobre restaurantes e cowboys em um filme sobre homossexualidade -, mas termina passando por uma jornada típica do gênero - treinamento corporal e mental tendo em vista a superação individual - para conseguir se afirmar.

Durante sua jornada, o mestre vai aprendendo a lidar com as limitações de seu discípulo, criando novos métodos de ensinar-lhe as técnicas de luta orientais e fazendo com que ele demonstre sua individualidade na execução do que foi aprendido. A irreverência típica dos norte-americanos entra em conflito com a China tradicional e cria um modo diferente de lutar, que usa também trejeitos que surgem decorrentes do aspecto físico de seu protagonista.

Dessa maneira, o longa rebate nos clichês de filmes de treinamento: quando há esforço físico e mental e entrega do herói à jornada que se propõe a realizar, todo ser é capaz de realizar qualquer coisa, não importando o que os outros pensem. Mesmo que o panda saiba que não tem a estética perfeita, ele, em nenhum momento, perde o peso para se tornar habilidoso, mas usa sua própria forma em beneficio de sua performance. Não precisamos nos ressentir de nossa aparência - ou de qualquer característica que nos incomode em nós mesmos - para cumprir os desejos do nosso coração, mas saber usá-la ao nosso favor.

Trovão Tropical e a sátira sem besteirol


Trovão Tropical, novo longa de Ben Stiller - uma paródia tanto aos filmes de guerra quanto à indústria do cinema blockbuster - opta por deixar de lado piadas mais óbvias, tendo como objetivo uma sátira mais corajosa aos produtores, agentes, astros e clichês de cinema que infestam a indústria do entretenimento.

O elenco reúne: Ben Stiller, que interpreta um astro que tem dificuldade em se envolver emocionalmente nas cenas e termina entrando numa jornada de aprendizado da arte da interpretação quando entra numa guerra verdadeira; Robert Downey Jr., que traz a personagem mais interessante do longa, um ator que sempre passa por mudanças drásticas fisicamente para os papéis que escolhe e perde, aos poucos, a noção de seu próprio corpo e alma, mantendo o personagem ao longo de toda a filmagem; Jack Black, cuja personagem explora o niilismo e a loucura da situação de guerrilha e os vícios que surgem em consequência destes. Além destes, temos participações de Tom Cruise - como o produtor do longa - e Matthew McConaghey - como o agente do personagem de Stiller.

Tendo como mote uma proposta inteligente - a filmagem de um longa de guerra com os atores vivenciando uma situação de guerrilha real, mas que foge ao controle dos produtores e atores, gerando efeitos nunca imaginados, como no famigerado A Bruxa de Blair -, o longa consegue se sustentar como uma sátira sem apelar para o besteirol, mas para os exageros típicos de uma comédia farsesca como a que se propõe ser.

Os traumas coletivos e a banalidade do mal em O Leitor


Hanna Schimtz e toda a Alemanha padecem de um mal irremediável: um passado negro que ainda os persegue. Enquanto que Hanna cometeu atos condenáveis em nome do cumprimento do dever, a Alemanha teve entre suas fronteiras o palco para a realização de um dos maiores atos genocidas de toda a História: o Holocausto.

O Leitor humaniza os algozes anti-semitas, trazendo a eles a imagem ao mesmo tempo frágil, determinada e ignorante da oficial nazista Hanna, que, depois de ter um caso com um adolescente e receber uma promoção no trabalho, decide ir embora da cidade, procurando fugir de um "defeito" que a persegue e envergonha.

A idéia de Stephen Daldry ao construir a delicada história de Hanna Schmitz de maneira tão objetiva - extinguindo alguns exageros melodramáticos e enfatizando em atuações sutis de seu elenco magnífico - talvez fosse a tentativa de nos fazer olhar com objetividade os acontecimentos que levaram a cobradora de bondes ignorante e rústica vivida por Kate Winslet a destruir tantas vidas judias sob a justificativa do cumprimento do dever.

Da mesma maneira que os estudos de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal - sobre Adolf Eichmann, oficial nazista que justificava da mesma forma suas atitudes anti-semitas -, Winslet constrói uma personalidade misteriosa e, ao mesmo tempo, simples para uma mulher que esconde um segredo que lhe traz vergonha e humilhação, o que, contraditoriamente, não acontece com os crimes genocidas cometidos durante o Holocausto.

Esse longa acumula ainda a idéia dos trauma coletivos que a Alemanha ainda sofre, tendo em seu passado um fato como o Holocausto, que terminou corroborando seu estigma de rudeza e xenofobia diante dos outros países. A complexidade do longa torna-o um dos melhores filmes que concorreram às principais premiações deste início de ano, com uma edição e um roteiro que misturam passado e presente de seus protagonistas fluentemente e esclarecem as idéias que Daldry deseja transmitir e, por consequência, tocar seu espectador.

16/02/2009

Vida X Morte em Benjamin Button




Por que desperdiçar a juventude sendo jovem e, por consequência, imaturo? Por que não ter nosso vigor juvenil agregado a uma mente sábia que só aparece com a experiência da velhice?

Benjamin Button nasceu com todas as crises corporais do corpo de um ancião, mas com o espírito sempre aprendiz de um recém-nascido. Abandonado pelo pai quando era criança, foi criado num asilo de idosos, tendo um contato direto com a finitude da vida e com as intempéries que ela traz, seja no corpo ou na consiência. A partir desse ponto de vista, Button foi criando - talvez inconscientemente - essa aura madura, esse serenidade para encarar as frustrações alheias, os objetivos mal escolhidos, as desesperanças...

Assim como todos nós, Benjamin nasceu com o relógio em contagem regressiva, a diferença é que ele se dá conta disso. Sua condição extraordinária o permitiu enxergar a beleza da juventude e do estar vivo, de poder aproveitar todos os momentos como se fossem únicos. A vontade de ir e vir, de explorar o desconhecido, de conhecer o outro de maneira única.

Todos nascemos com essa sentença decretada, mas nos achamos eternos e, às vezes, desperdiçamos os segundos, as horas, as semanas com tantos sentimentos e sensações que nos levam a lugar nenhum ou, se preferir, ao arrependimento. Mas Benjamin nos traz a esperança de que. um dia, possamos compreender nosso papel no mundo e fazer valer a pena os dias que nos restam.

Apesar de algumas falhas, o roteiro de Eric Roth - bebendo da fonte de seu sucesso Forrest Gump - permite a imersão nesse universo simples e belo em que vive Benjamin, além da trilha sonora e da fotografia inspirada, sem falar na edição primorosa, que não faz com que as quase três horas do longa sejam sentidas tão fortemente.

Cuidadosamente construído por David Fincher, O Curioso Caso de Benjamin Button toca o espectador com sua consistência e fluidez narrativa, além de idéias que falam ao coração de todo ser humano.

Coraline e os universos paralelos de que tanto gostamos


Quantas vezes nos sentimos deslocados do mundo em que vivemos e sonhamos com uma existência paralela, onde todos cumpram nossos desejos num estalar de dedos? Quantas vezes nosso id sofreu essas retaliações e procurou esconder-se dentro de si mesmo, o único lugar seguro para habitar?

Coraline, novo longa de Henry Selick - genitor de O Estranho Mundo de Jack -, trata desse sentimento que, além de perpassar a infância, também nos persegue por toda a vida. Nessa idéia se encontra a universalidade da história dessa garota que, não recebendo a devida atenção dos pais, termina encontrando na porta de seu quarto um universo paralelo, onde sua mãe cozinha e conversa com ela e seu pai não trabalha insistentemente num catálogo de jardinagem, mas se revela um exímio pianista e jardineiro.

Baseado numa história de Neil Gaiman - famigerado criador de Sandman -, o longa, utilizando o mesmo estilo gótico que fez a fama de Selick e seu Estranho Mundo, apresenta ao espectador o universo agradável da Outra Mãe como algo utópico e negativo, já que a convivência de Corlaine nesse mundo fantástico termina por lhe trazer consequências dolorosas e ela precisará amadurecer para perceber a tragédia de se perder aquilo que se tem.

Por mais que essa mensagem pareça banal e infantil, quantos de nós já nos encontramos nessa situação, quando desejamos que nossos amigos de trabalho, nossos cônjuges e nossos chefes fossem diferentes daquilo que nos demonstram ser?

13/02/2009

Hulk e as potencialidades do cinema autoral


Talvez seja injustiça analisar filmes cujo propósito maior não ultrapassa a sólida barreira do entretenimento fácil, mas, ao pensar que, como espectador, eu me senti lesado ao não ter a menor diversão de assistir a O Incrível Hulk, posso me dar o direito de expor meus motivos para que isso tenha ocorrido.

Bruce Banner - Edward Norton faz o que pode, mas não salva -, após a contaminação pelos raios gama, vai ao Brasil tentar encontrar a cura, mas termina sendo perseguido pelos seus opositores e embarcando num romance com a dra. Betty Ross - Liv Tyler não convence - e enfrentando um inimigo com os mesmos poderes que o gigante verde-esmeralda.

A impressão que fica quando se assiste o longa é de que as cenas de ação foram o primeiro item da pauta de reunião de roteiro e a história aparece como último item, um fiapo de idéia que interliga uma explosão a outra. As protagonistas não comportam a complexidade que a situação em que se encontram poderia gerar nas suas consciências, algo que, no desenvolver da trama, resume-se à busca de Banner pela cura, aos olhares apaixonados e lacrimosos de Ross e da vilania unidimensional dos antagonistas. A consequência dessa falta de cuidado dos roteiristas termina sendo a construção fraca de uma trama sem química ou identificação, o que termina fazendo com que o filme seja levado com a barriga pelo espectador, que talvez nem se envolva o suficiente com as sequências de ação.

Tavez a presença de um diretor que não seguisse as cartilhas do cinema de ação - mas que, com sua veia autoral, procurasse ter um olhar diferente sobre o material que lhe foi dado, como Guy Ritchie, Sam Raimi, David Fincher, JJ Abrams, Doug Liman ou Tom Tykwer - teria trazido algo diferente a um público que almeja algo mais quando vai ao cinema. Essa resposta ao filme de Ang Lee termina metendo os pés pelas mãos e não vinga nem como filme de quadrinhos nem como filme de ação.

12/02/2009

Feliz Natal por um cinema verité anti-social




Feliz Natal, primeiro longa dirigido pelo ator mineiro Selton Mello, traz um novo sopro na safra de filmes das terras brazucas, referenciando a estéticas do cinema verité - sem temática social, vale a pena ressaltar - e aproveitando o improviso de grandes atores como Leonardo Medeiros, Graziella Moretto e Darlene Glória.

Caio, dono de um ferro velho no interior do estado, decide retornar à casa de seus pais durante as festividades natalidades, a fim reencontrar e sarar feridas há muito enterradas. A vida de irresponsabilidade divertida compartilhada antes com seus amigos não mais existe, dando lugar ao ódio perpetrado por sua família ao sujeito que manchou a reputação de todos. Caio passou a ser persona non grata na sua própria casa, renegado pelo próprio pai (Lúcio Mauro) e desconhecido pelo sobrinho Bruno (Fabrício Reis), precisa enfrentar a obsessão e o alcoolismo da mãe Mércia (Darlene Glória) e a apatia do irmão (Paulo Guanieri) na tentativa de salvar a si mesmo de seu passado.

Durante os 140 minutos do longa, Mello constrói personagens cativantes, que enfrentam altos e baixos de maneira contundente e delicada ao mesmo tempo, embarcando numa jornada que leva o espectador a uma subliminar morte de si mesmo. Sofrer é morrer aos poucos, mas qual a resposta que encontramos quando nos perguntamos: "por que eu?".

Como atesta o final do longa, viver é sofrer. Aquele que não sofre mais é por que já não está mais aqui. Bruno não vai embora, mas faz uma viagem por aquela janela para uma inexistência que leva à liberdade que a infância oferece. Ao contrário de Caio, que permanecerá sempre preso aos fatos que levaram à sua infelicidade.

01/02/2009

A Vida de David Gale e a manipulação do discurso



Vi recentemente o filme A Vida de David Gale, que reflete sobre a pena de morte e conta a história de um professor universitário acusado do estupro e morte de uma colega de trabalho. Condenado ao corredor da morte, Gale convoca uma jornalista para ouvir a sua história e desenterrar momentos tristes da vida deste homem.

O filme de Alan Parker representa um tipo de cinema idealista, adepto da manipulação das imagens e idéias na tentativa de direcionar o discurso da pena de morte como algo que precisa ser excluído da face da Terra. Apesar de concordar totalmente com Parker, seu filme termina se tornando um grande panfleto de ideais, com diálogos, cortes e planos que evidenciam o caráter heróico de seu protagonista, quando o colocam como mártir pela causa que defende.

Mas esse cinema engajado não é privilégio de Parker: Serguei Eisenstein - o famigerado diretor de A Greve e O Encouraçado Potemkin -, que na tentativa de causar no espectador uma reação, um choque, editava seus filmes com base no confronto entre duas imagens. Outros passaram a aderir a esse cinema de propaganda, de idéias: Leni Riefensthal, Dziga Vertov...

Mas esse tem sido um cinema mais raro hoje em dia, quando estamos enfrentando um apogeu do cinema que fale à intimidade do espectador, mas do que ao seu intelecto. Apesar de Parker se render a alguns clichês do suspense, seu final faz pensar sobre até que ponto seguimos firmes com nossos princípios, tornando-nos mártires de nossas próprias causas.

C'est fini.